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terça-feira, novembro 26, 2024
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Direito a bordo: entenda como funcionam as relações de trabalho em cruzeiros marítimos

Aplicação de diversos ordenamentos jurídicos é inviável, uma vez que viola normas de direito internacional privado, cria desigualdades entre os tripulantes e compromete a saúde do negócio

Em um cruzeiro marítimo, com tripulantes de dezenas de nacionalidades diferentes, qual é a legislação aplicável? Antes de responder a essa pergunta, é preciso entender que essas relações que envolvem trabalhadores que prestaram serviços no exterior são complexas e diferenciadas. Desse modo, é de extrema importância uma adequada interpretação das normas existentes.

Ao analisar decisões proferidas pela Justiça do Trabalho brasileira sobre o tema, é possível verificar certa oscilação. Nota-se, muitas vezes, a tentativa da aplicação de uma fórmula que possa acolher todos os casos, o que, a toda evidência, não se mostra viável.    Em razão da peculiaridade do trabalho, exercido por tripulantes de diversas nacionalidades submetidos ao mesmo empregador estrangeiro, e que passam por inúmeros territórios internacionais em uma temporada, torna-se inviável a aplicação de vários ordenamentos jurídicos simultaneamente.

Certamente tal fato provocaria o chamado “caos a bordo”. Isso porque seria necessário aplicar diversas legislações para resguardar os direitos dos tripulantes de cada país, fato que comprometeria o próprio desenvolvimento da atividade econômica.

Outro importante fator que se deve levar em consideração é o tratamento desigual que consequentemente seria dado aos tripulantes. A aplicação simultânea de diferentes legislações trabalhistas comprometeria a harmonia e a justiça contratual vigente nas embarcações, causando o tratamento desigual dos empregados. Dessa forma, violaria a mais primária e elementar justiça, que é precisamente a igualdade.

Ao aplicar a legislação brasileira aos empregados brasileiros que prestam serviços em navios estrangeiros, estaríamos diante de uma grave violação ao princípio da igualdade e não discriminação, consubstanciado no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Além de que tal determinação causaria grave insegurança jurídica, violando previsão constitucional insculpida no art. 5º, XXXVI, da CF.

A convenção referente à eliminação de discriminação em matéria de emprego e ocupação (Convenção nº 111, da Organização Internacional do Trabalho – OIT), promulgada pelo Brasil com o Decreto nº 62.150/68, estabelece que os estados membros da OIT devem promover a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação:

 Art. 1º. Para fins da presente convenção, o termo “discriminação” compreende: toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão;

(…)

Art. 2º. qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.

Assim sendo, admitir que os empregados subordinados ao mesmo empregador, em um mesmo local de trabalho, sob as mesmas condições de trabalho, tenham tratamentos distintos ao desembarcar, em virtude das diferentes legislações que estejam submetidos, implicaria na impossibilidade de dar cumprimento integral às normas trabalhistas, provocando tratamento desigual e discriminatório entre os tripulantes.

Diante disso, torna-se inadmissível a aplicação da legislação trabalhista brasileira (Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT) para tripulantes brasileiros, em razão da violação aos princípios da igualdade e segurança jurídica. Pelo ordenamento jurídico brasileiro vigente, com fundamento nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, a lei que deve reger as relações jurídicas de trabalho nas embarcações é, em regra, a lei do país da bandeira do navio.

Ademais, a Maritime Labour Convention 2006 (ou  Convenção do Trabalho Marítimo, convenção da OIT, vigente desde   agosto   de   2013), impõe a observância de uma série de normas de proteção à dignidade da pessoa humana. Destaca-se, inclusive, que a referida Convenção revogou, em seu Artigo X, uma série de outras convenções de tutela de trabalhadores marítimos, justamente por tratar especificamente de cada uma delas, como um verdadeiro Código do Trabalho no Mar.

A ratificação da MLC levou a vigência internacional e a efetiva implementação do Tratado Internacional para um universo cada vez maior de  embarcações, beneficiando trabalhadores do mundo todo, acabando com as bandeiras de conveniência e proporcionando mais proteção ao marítimo. Ao mesmo tempo, a padronização da legislação aplicável por meio de um tratado internacional com origem na OIT afasta discriminações e desigualdades, já que a CLT não abraçaria o contrato do filipino, indiano ou hondurenho, por exemplo.

Por essa razão, as premissas a serem consideradas para a fixação da norma aplicável devem observar tais particularidades. A medida pode evitar situações inusitadas, de administração inviável, só concebida no mundo das ideias e que possam ensejar tratamento diferenciado aos tripulantes que se submetem às mesmas condições de trabalho no navio.

A situação é específica e merece tratamento igualmente especial. Não há como exigir que as empresas que operam no ramo de viagens de cruzeiro marítimo internacional submetam-se à legislação do país de cada um dos tripulantes.  Se assim fosse, daria brecha para o tratamento diferenciado da tripulação, embora posta em situação de trabalho idêntico, violando-se normas de direito internacional privado, bem como a própria CRFB/88, em seu art. 178.

Esse fato não afasta a necessidade de proteção, que não é aquela prevista por cada país de origem desses tripulantes, mas decorre de uma legislação de aplicação internacional e que possa reger a relação jurídica de trabalhadores que prestam serviços em iguais condições.

Fontes:

– Decreto Nº 62.150 de 19 de janeiro de 1968;

– Decreto Nº 10.671 de 9 de abril de 2021;

– Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;

– Bomfim, Vóila. Direito do Trabalho, 18ª Edição – Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021;

– Husek, Carlos Roberto. Curso Básico de Direito Internacional Público e Privado do Trabalho, 5ª Edição – São Paulo: LTR, 2020.

*Felipo Cabral Corvalan é advogado associado no Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica, atuante no núcleo de Direito Internacional Público e Privado do Trabalho.

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