Líder no ranking mundial de processos contra companhias aéreas, Brasil precisa encontrar caminhos de prevenção de litígios
Especialistas defenderam mudança no modelo de resolução de conflitos, durante evento promovido pela OABRJ Enquanto nos Estados Unidos são registrados cerca de 10 mil processos anuais contra empresas aéreas, no Brasil esse número salta para meio milhão. As mesmas companhias que operam no exterior enfrentam aqui um ambiente de hiperjudicialização que não encontra paralelo no mundo. O tema foi debatido na última sexta-feira (23), na sede da OAB Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, durante evento que reuniu especialistas do setor, advogados e autoridades. “O Brasil responde sozinho por 98,5% de todas as ações judiciais contra companhias aéreas no mundo. Isso não acontece em nenhuma outra indústria, nem em nenhum outro país”, alertou Julia Lins, CLO de Contencioso Cível do Albuquerque Melo Advogados, escritório que atua na defesa de empresas aéreas nacionais e internacionais. O encontro, promovido pela Comissão de Direito Aeronáutico, Espacial e Aeroportuário da OABRJ, buscou entender as raízes desse cenário e discutir soluções práticas. Comparações com outros mercados mostram que o problema não está na qualidade do serviço prestado, mas na própria cultura jurídica brasileira. “Na União Europeia são cerca de 50 mil processos por ano. Nos Estados Unidos, 10 mil. Aqui são 500 mil por ano, contra as mesmas empresas, que operam com os mesmos aviões, os mesmos pilotos e os mesmos padrões internacionais de segurança. Há algo profundamente errado no nosso modelo”, reforçou Julia Lins. Para a presidente da OAB Barra da Tijuca, Renata Mansur, o Brasil precisa olhar para modelos adotados no exterior. Ela citou como exemplo Buenos Aires, onde a legislação obriga consumidores e empresas a passarem primeiro por mediação ou arbitragem, antes de levar o conflito ao Judiciário. “No Brasil, a própria Lei 9.307/96 impede a arbitragem em relações de consumo, o que contribui para esse cenário caótico. Precisamos pensar de forma globalizada, porque a aviação é, por essência, um setor internacional”, defendeu. Segundo Renato Rabelo, gerente de Relações Institucionais da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), a crescente litigiosidade nas relações entre companhias aéreas e consumidores é como um jogo de perde-perde, no qual é necessário buscar soluções em conjunto. O presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/RJ, Antonio José e Silva, que também é piloto, fez um alerta contundente: os custos com processos judiciais já estão embutidos no preço da passagem aérea no Brasil. Segundo ele, cerca de 1% do valor do bilhete é reservado para cobrir despesas com indenizações, acordos e condenações. “Isso cria um ciclo perverso. Parte desse dinheiro, que poderia ir para a manutenção de aeronaves, modernização de aeroportos ou treinamento de pessoal, vai para bancar processos que, em muitos casos, poderiam ser resolvidos de forma mais simples”, afirmou. Por que só no Brasil? Entre os fatores que explicam essa realidade, especialistas citaram desde questões culturais — com o país figurando há décadas entre os mais litigantes do mundo, segundo dados do CNJ — até falhas na legislação e no sistema de atendimento aos passageiros. A advogada Julia Lins foi categórica ao afirmar que parte da crise é causada pela resistência dos tribunais brasileiros em aplicar legislações internacionais, como a Convenção de Montreal, e normas específicas da própria ANAC que regulamentam o setor, preferindo se apoiar exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Além disso, ela apontou como vilões do cenário atual o incentivo à atuação de “aplicativos abutres”, que promovem a judicialização massiva e muitas vezes representam um abuso do direito de ação. As milhas também viraram problema jurídico Outro ponto crítico levantado no evento foi o mercado paralelo de milhas aéreas, tema abordado por Rafael Verdant, também do Albuquerque Melo Advogados. Segundo ele, as milhas não foram concebidas como moeda de troca, mas como benefícios condicionados a regras específicas de cada programa de fidelidade. “A falta de uma regulamentação clara abriu espaço para um mercado informal de compra e venda de milhas, o que frequentemente gera frustrações e litígios, tanto por parte dos consumidores quanto das companhias”, explicou Verdant. Ele defende que as próprias empresas possam estabelecer regras claras e transparentes, respeitando o direito do consumidor, mas dentro dos termos e condições dos programas de fidelidade. “O setor só será sustentável se houver segurança jurídica sobre o que são e como podem ser usadas as milhas”, completou. Soluções: menos litígio e mais diálogo O consenso entre os participantes foi de que é urgente fortalecer os mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos, como SACs bem estruturados, Procons, plataformas como o Consumidor.gov e até canais próprios das empresas, como chats e autoatendimentos. Julia Lins reforçou a importância da educação dos passageiros bem como sugeriu uma possível penalidade para passageiros que litigiam de má fé. “É necessário investir na prevenção de litígios, bem como ouvir os dois lados e fomentar o treinamento e capacitação do Poder Judiciário em relação a aplicação das resoluções específicas do setor aéreo e das convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, considerando que estamos falando de uma operação globalizada”, afirmou. Educação, fiscalização e modernização Na visão dos especialistas, o caminho passa necessariamente por três frentes:
Também estiveram no debate Claudir Rodrigues, subsecretário de Estado de Proteção aos Direitos Difusos, Coletivos e Individuais do Consumidor na Secretaria de Estado e Defesa do Consumidor do RJ; André Proença, Coordenador da Escola de Defesa do Consumidor do Estado do RJ; Luciano Galina, Coronel Aviador responsável pela Junta de Julgamento da Aeronáutica; o professor José Roberto de Assis; Wagner Dockhorn, especialista em direito internacional. |