Por Ricardo Bernardi, sócio e fundador do Bernardi & Schnapp Advogados
O transporte de bagagem acompanhada, previsto no art. 234 do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), se realiza a partir de contrato distinto daquele entabulado para o transporte do passageiro, previsto no art. 227 e seguintes do mesmo Código. O primeiro se comprova a partir da entrega de nota de bagagem, e o segundo, a partir do bilhete de passagem.
Muito embora o transporte de bagagem despachada configure contrato acessório oferecido pelo transportador, e, portanto, subordinado ao contrato principal de transporte de passageiros, trata-se de serviço próprio e como tal deve ser remunerado. Dessa forma, o passageiro apenas deve pagar pelo serviço de transporte de bagagem caso assim contrate, caso contrário arcaria com custo por serviço que não o beneficia.
Nesse cenário surpreendeu muito a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de proposta para alteração ao art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, de forma que a cobrança pelos serviços de transporte de bagagem em voos nacionais com peso não superior a 23 Kg e em voos internacionais com peso não superior a 30 Kg passe a configurar prática abusiva. Nada melhor descreve os efeitos da notícia do que perplexidade e incompreensão acerca da motivação de tal medida, que, caso sancionada, representaria um retrocesso teratológico a tudo o que se conquistou em termos de modernidade na regulação do transporte aéreo, além de colocar o Brasil em descompasso com as melhores práticas adotadas por praticamente todos os demais países do globo.
Como demonstraremos a seguir, ainda que nos limites deste artigo, a alteração legislativa aprovada pela Camada dos Deputados é manifestamente inconstitucional e viola normas internacionais garantidoras do funcionamento dos serviços aéreos internacionais.
Desde a edição da Resolução 400/16 pela ANAC, tem havido desmedida polemica em torno da cobrança segregada pelo transporte de bagagem acompanhada, o que provavelmente decorre da confusão que ainda se faz no que se refere à natureza dos serviços de transporte aéreo, além do desconhecimento das normas internacionais aplicáveis a serviço.
Isso porque antes da Medida Provisória 1.089/21, os artigos 174 e 175 do CBA definiam o transporte aéreo regular como serviço público, o qual sujeitava-se a expressiva regulamentação quanto a vários aspectos econômicos, inclusive formação de preços e imposição de condições de contratação dos serviços. Com base nesse regime de ampla intervenção estatal, a antes vigente a Portaria 676/2000 expedida pelo Comando da Aeronáutica, há muito revogada, previa franquias mínimas para o transporte de bagagem em voos domésticos, sendo que para voos internacionais o franqueamento ficava a critério de cada empresa aérea.
Todavia, pela própria dinâmica associada ao transporte aéreo, nunca foram aplicáveis a esta atividade econômica as normas relativas a serviços públicos, a começar pela ausência de licitação prévia. Nessa linha, já no início dos anos 90, a partir da V CONAC, iniciou-se uma gradativa desregulamentação do setor, com o escopo de promover acirramento da competição, o que culminou, entre outros resultados, com a implementação do regime de liberdade tarifária, incorporada em nosso ordenamento jurídico a partir da Lei 11.182/05. Justamente como mais um passo dessa evolução, a recente MP 1.089/21 alterou o artigo 174 do CBA e revogou os seguintes, para dispor que serviços aéreos são considerados atividades econômicas de interesse público submetidas à regulação da autoridade de aviação civil.
Se no passado poderia haver dúvida acerca do regime jurídico em que se inseriam os serviços de transporte aéreo, de forma a se ponderar a possibilidade de alguma intervenção do Estado na formação do preço ou das condições de contratação dos serviços, hoje é inquestionável que se trata de atividade econômica em sentido estrito, em que impera e livre concorrência com base em condições de mercado. Por essa razão, são inaplicáveis as normas típicas das concessões de serviços públicos tais como a obrigatoriedade de previa licitação, bem como aquelas que asseguram mecanismos de revisão de tarifas para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Em outros termos, não pode haver intervenção do Estado quanto à formação do preço e condições para contratação dos serviços de transporte aéreo.
Dessa forma, o empresário que se propõe a desenvolver atividade de transporte aéreo assume integralmente todos os riscos de mercado. Conforme bem ilustrado na Nota Técnica n. 5(SEI)/2017/GCON/SAS expedida na ocasião da publicação da Resolução ANAC 400/16, a referida assunção de riscos “justifica o fato deles” (empresas aéreas) “terem liberdade de determinação de preços e de cláusulas contratuais, incluindo, ainda, a liberdade para diferenciar produtos e serviços conforme demanda e rotas atendidas”. A ANAC ainda esclareceu por meio da referida nota: “esta liberdade abrange inclusive a estipulação das condições de prestação dos serviços e das correspondentes cláusulas e multas contratuais.”
Não cabe qualquer intervenção do Estado na precificação dos serviços, sob pena de violação dos princípios que norteiam a ordem econômica previstos no art. 170 da Constituição Federal, especialmente a livre concorrência, segundo o qual o empresário é livre para estabelecer preços de acordo com as condições de mercado, e da livre iniciativa, que se traduz na liberdade de contratar. A intervenção estatal apenas se afigura possível quando for necessária atuação repressiva do Poder Público, desde que presente alguma forma de abuso de poder econômico e observados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Até para aqueles que admitem o alargamento das hipóteses em que cabe a intervenção para estabelecimento de controle de preços, como defende o Ministro Luis Roberto Barroso, tal apenas se legitimaria diante da ocorrência de situação de anormalidade, de grave deterioração das condições de mercado, com ausência de livre concorrência e colapso da própria livre iniciativa, o que não se vislumbra no setor de transporte aéreo.
A liberdade tarifaria, entendida como direito de definir preços e condições de contratação, também é garantida por tratados internacionais firmados pelo Brasil.
Sem nos aprofundarmos nas raízes do regramento internacional aplicável ao transporte aéreo internacional, relembramos que a Convenção de Chicago, promulgada no Brasil por meio do Decreto 21.713/46, teve o proposito precípuo de criar um sistema legal harmonizado, de forma que os operadores dos serviços pudessem ter segurança jurídica e, portanto, previsibilidade, para planejar a execução de suas atividades em todo o mundo. Com base nessas premissas, implementou-se o regime das “liberdades do ar” a partir de Acordos sobre Serviços Aéreos (ASAs), que são tratados bilaterais firmados entre países com o escopo de estabelecer as condições necessárias para a exploração de serviços de transporte aéreo entre os signatários. O Brasil firmou tratados bilaterais que garantem a prestação de serviços de transporte aéreo internacional com mais de 100 países.
Os tratados mais modernos, chamados acordos de céus abertos, aprimoram a eficiência dos serviços ao trazer regimes em que vigora menor regulamentação e fomentam ampla concorrência entre as empresas aéreas, firmemente embasados na liberdade de contratação e fixação de tarifas. Tome-se como exemplo o mais recente tratado sobre serviços aéreos celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos assinado em março de 2011, o qual prevê, em seu artigo 12 item “1”, que “cada parte permitirá que os preços para o transporte aéreo sejam estabelecidos pelas empresas aéreas de ambas as Partes com base em considerações comerciais do mercado”. No mesmo sentido destaca-se o acordo firmado com o governo da Suíça, aprovado por decreto legislativo do Senado, segundo o qual “as tarifas cobradas pelos serviços poderão ser estabelecidas livremente pelas empresas aéreas designadas”. Existem acordos semelhante firmados com Arábia Saudita e Costa Rica, sendo essa a tendencia para o futuro.
Dessa forma, qualquer norma que venha a impor restrições à formação de preços ou forma de contratação pelos serviços de transporte aéreo violará frontalmente, não apenas a Constituição Federal e o regime de liberdade tarifária incorporado ao nosso ordenamento jurídico, mas também os tratados bilaterais que viabilizam a existência de conexões pela via aérea a partir do Brasil, colocando assim em risco todo um sistema que viabiliza a malha aérea e proporciona conectividade entre o Brasil e o mundo, o que trará consequências gravíssimas ao país.
A proposta de alteração legislativa passa a considerar a cobrança pelo serviço de transporte de bagagem até determinado limite de peso como prática abusiva, mas na realidade trata-se do mais agudo exemplo de intervenção indevida na atividade econômica do setor, na medida que afeta a liberdade das empresas aéreas de precificarem os serviços de transporte de passageiros. Fere a liberdade tarifaria assegurada em lei e especialmente nos tratados internacionais uma vez que impede que empresas aéreas cobrem pelo serviço de transporte de bagagem e as força a embutir esse custo na remuneração pelo transporte de passageiros. Fere os interesses do consumidor, principalmente daquele que viaja sem bagagem despachada, que acabará pagando por serviço que não usa, mas também daquele que viaja com bagagem, já que a inclusão de custos associados ao transporte de bagagem no valor do bilhete impede a devida alocação de despesas e receitas, o que gera potencial aumento global no preço pelo serviço como um todo. Essa obviedade é clara, mas foi invisível aos olhos da Câmara dos Deputados, que apenas desejam controlar o preço do bilhete porque o consideram alto, sem qualquer consideração às razões de mercado que levam esta situação.
Conforme mostra a experiencia e os estudos no campo da economia, a interferência do Estado na formação do preço de bens e serviços não promove justiça social nem protege efetivamente o consumidor, mas sim causa redução nos investimentos e desinteresse na atividade econômica. A constante tendencia populista de impor tabelamento ou congelamento de preços, como se pretende por meio da alteração legislativa objeto de análise neste artigo, já foi responsável por longos períodos de estagnação econômica do país e é isso que ocorrerá caso medidas como esta sejam incorporadas ao nosso ordenamento jurídico.